Lá se vão mais de 60 anos que Nelson Rodrigues queixou-se do desaparecimento dos vigaristas do apito: "um desfalque lírico e dramático para os jogos modernos", denunciou ele, em crônica de título homônimo a esta. "As condições do futebol contemporâneo tornam impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino", acrescentou o Anjo Pornográfico.
Eu não sou quase ninguém para lamber a sombra das chuteiras imortais rodrigueanas. Mesmo assim, ouso contestá-lo e declaro em alto e bom som que o juiz ladrão nunca esteve tão vivo. Ele não desapareceu, apenas sofisticou sua arte.
Pênaltis escandalosos, expulsões injustificadas e impedimentos inexistentes ainda são marcados, exibidos, reprisados e repisados aqui e acolá pelos burros videotapes da vida. Mas não percam tempo procurando o juiz ladrão onde só se encontram amadores, canastrões ou meros incompetentes da arbitragem.
Esqueçam aquela velha história de malas pretas cheias de dinheiro vivo. Isso é coisa do passado, um procedimento em desuso, restrito a uma parcela insignificante de acumuladores nostálgicos e mentes patológicas. O juiz ladrão hodierno, objeto em questão desta tese, ambiciona mais o capital simbólico que o material, propriamente.
Ele exala a austeridade típica dos grandes defensores da lei e bota banca de palmatória do mundo. É, em suma, um moralista! Construído o disfarce, conquista a anuência ou conivência - como preferirem - da crítica escrita, falada, televisada e digitalizada que, num clique ou num zap, conseguem a proeza de catapultá-lo à condição de herói.
Para os leigos nas matreiragens da bola, o juiz ladrão faz mais pelo futebol o Escrete de 70. O larápio enrustido chega a constituir-se em verdadeiro ídolo, a ponto de converter torcedores dos times para os quais presta serviço em adeptos de seu próprio fã clube. Como consegue ludibriar a tanta gente por tanto tempo? Ora, fazendo aquilo que mais sabe fazer: aplicando a regra do jogo de forma implacável, mas apenas para um dos lados do campo.
Sim meus amigos, houvesse justiça no futebol cada contenda registraria 12 pênaltis e oito expulsões pra cada time. Mas não raro e com frequencia até, a lei, esta megera, não alcança os amigos do rei. E não adianta botar a mão na cabeça, protestar, xingar a progenitora do infeliz, juntar as mãos em prece para que seja algemado e levado da arena de camburão ou para que o TJD reverta a decisão. A verdade é que a complexidade do jogo na atualidade ampara a ação do juiz ladrão de tal forma, que ele virou apenas uma peça da engrenagem, a ferramenta de um sistema de manobras, manipulações, maracutaias e outros saberes e ciências de fundamental importância para se garantir a vitória antes e depois da abertura e do fechamento das cortinas do espetáculo.
O disparate chega a tal ponto, vejam só, de anularem no tapetão até mesmo resultado da final do último campeonato pra entregar a faixa de campeão ao vice e, como se fosse pouco, de suspender o craque do nosso time pra ele não disputar a próxima decisão. Reviravoltas dessa monta fariam corar de vergonha até mesmo as mentes mais pervertidas da nossa sociedade. O prórpio Nelson Rodrigues, que apoiou a Virada de Mesa do Brasileirão de 1964, segundo consta, estaria a revirar-se dentro do caixão. Mas esta é a realidade que restou a nós pobres mortais, esta é a vida, torcida brasileira! A vida como ela é.