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Milena Velloso

Chove chuva, chove sem parar


Desde que chegamos de um breve período de férias em Salvador, a chuva não deu uma única trégua no Capão. O aguaceiro transformou o pó da estrada em lama e por um bom período vivemos no esquema ‘quem tá dentro não sai, quem tá fora não entra’. Nos momentos mais críticos, os carros que fazem a linha Palmeiras-Capão deixam as pessoas na metade do percurso, no Rio Grande, e de lá pra cá a subida é à pé mesmo.

Muitas vezes, uma simples saída para o mercado ganha ares de aventura. O pântano em que se tornaram as ruas outrora poeirentas, transforma até mesmo um pequeno percurso numa versão sertaneja do Rally Paris Dakar. Defendo que qualquer pessoa antes de se mudar pra cá deveria ser obrigada a fazer uns três anos de curso técnico em sobrevivência a escassez e excesso de chuvas.

Passar dias ou longos períodos no Vale de férias e viver aqui são experiências absolutamente distintas e infelizmente os aprendizados da primeira de nada valem para a segunda.

O direito de ir e vir é uma das leis válidas em todo o território nacional que não alcançam o Vale do Capão. Esse é o nosso drama coletivo. O meu, individual, é lavar roupa. Se quando sobra sol falta água nas torneiras e reservatórios e o jeito é ir transportá-las em baldes no rio, na temporada de chuvas a umidade é tamanha que a roupa não seca, se acumula e em uma semana já estamos usando meias fedidas e considerando a possibilidade de transformar toda a casa em um enorme varal.

Assim que o Capão não é mesmo para os fracos, quem já está aqui há tempos, tira de letra. Eis que num gesto extremo de esforço e audácia de me deslocar até a Vila, enfrentando as adversidades impostas pela natureza selvagem em busca de uma cervejinha ultra gelada e uns petiscos me deparo com Loi, uma guerreira da área cultural, ensaiando com meninos para peça do Auto de São Sebastião em plena chuva torrencial no salão do posto. Detalhe importante: as crianças haviam ido a pé da Mata, comunidade que fica a uma distância três vezes maior que o percurso que fiz de carro.

Nessas horas me sinto pequena e limitada e muito, mas muito estragada pela dita “vida civilizada”. Penso que tivesse eu feito o tal do curso em Viver no Capão, quem sabe me sentisse capaz de realizar essas proezas de quem aqui reside há anos. Viver com muita e pouca água em relativa paz com os meus afazeres, tocando a vida e seguindo com o barco, e nesse caso, galochas, artigo de fundamental importância pra a sobrevivência nessas plagas.

O fato é que não fiz o tal do curso e cá estou, me sentindo ilhada e com as mãos ressecadas de tantos encher e esvaziar baldes de água com cloro para tentar livras as roupas de cama e banho do mofo que se apoderou delas desde que deixamos o Vale pra curtir umas curtas e ingênuas férias em Salvador. Ao retornarmos tudo estava mudado, como bem dizia Baby do Brasil: a paisagem exuberante, a Cachoeira do Batista jorrando sem parar, as roupas da casa se acumulando, tudo úmido...

Se há 48 anos, centenas de mulheres se reuniram na frente de um teatro em Atlantic City onde acontecia o Miss América, levando com elas o que julgavam representar símbolos de opressão e sexismo para então fazer uma grande fogueira e queimá-los, eternizando assim o sutiã como o marco da luta feminista, hoje provavelmente, na minha humilde e ‘feminística’ opinião, uma grande fogueira de devoção deveria ser erguida diante de outros símbolos que representam o oposto: máquina de lavar seria juntamente com a secadora, dois dos principais itens a serem louvados, principalmente em uma família com 5 pessoas, 3 cachorros e um gato vivendo juntos em uma casa repleta de barro e lama por todos os lados.

Assim que antes de terminar esse texto percebo que o amigo sol resolveu nos fazer uma visita, aparentemente breve, pois as nuvens escuras e carregadas ainda rondam à espreita, aguardando por falsas esperanças de dias ensolarados que ousem se apresentar, nos roubando um pouco da reclusão e resiliência que dias mais chuvosos aqui nos impõem.

Esses momentos de visita de médico não têm durando mais que uma hora por dia e lá vem a chuva novamente, às vezes faceira, mansinha, às vezes forte, com trovoadas e raios. Pois que a vida no Vale segue seu curso. Lama, poeira, chuva ou seca são apenas temperos, muitas vezes atrapalham um pouco saborear o prato principal devido aos excessos ou escassez, mas não chegam nem perto de comprometer a ousadia de saboreá-lo com toda a sua simplicidade e o seu exotismo.


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