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Milena Velloso

Desossando o frango e temperando a vida


Antes de nos mudarmos eu morava em Lauro de Freitas e coordenava dois projetos em uma ONG de Salvador. Adorava o que fazia, apesar da gastrite crônica e dores na articulação do pulso esquerdo resultantes do excesso de trabalho. Tinha pouco tempo para minha filha Marina, à época com 2 anos, e ainda usava um dos poucos horários livres pra dar aulas de inglês na escola de Ananda, a filha do meio.

Sempre achei que, para além da rotina puxada, o mais complicado é administrar tantos papéis ao mesmo tempo: mãe, mulher, profisisonal. Acredito que ainda hoje, apesar de serem maioria, muitas mulheres ainda sofrem com essa comapartimentalização da vida e talvez não se sintam inteiras em nada do que fazem pois sempre nos sentimos em débito por causa daquilo que deixamos de fazer, especialmente quando estas ausências afetam a criação dos nossos filhos.

Com certeza ganhamos muito com o feminismo, mas não há bônus sem ônus e nós mulheres continuamos pagando uma pesada cota de sacrifícios, mesmo depois da invenção da pílula anticoncepcional.

O que supostamente seria um ano sabático para mim, o momento para me concentrar na publicação de um livro infantil que até então não conseguira priorizar devidamente e a oportunidade de voltar a estudar, revelou-me que se a vida dividida de mulher Bombril é dificil, a de ser dona de casa full time é muito pior.

Os primeiros seis meses deste ano sabático eu diria que foram, na verdade, dramáticos, com muitos desafios a serem superados, desde a cosntrução da casa até o estabelcecimento de uma rotina minimamente conhecida e familiar. Todos os dias, até junho, mais ou menos, lídavamos diariamente com o imprevísivel, desde as coisas mais simples como acesso a serviços básicos como água, energia elétrica, internet e telefone, a situações mais delicadas, como a falta de grana oriunda, parte por nossa negligência no planejamento, parte por atrasos nos pagamentos dos nossos trabalhos.

Hoje por exemplo, Lelo foi ser "educador por um dia" na escola de nosso filho mais velho, Luan, projeto concebido pelos pais para suprir a ausência de profissionais como porteiro e fiscal de pátio na Escola Municipal. Em que pese o fato de eu não concordar com a necessidade de bedel na Escola, fui voto vencido na reunião, mas como sou uma pessoa democrática aceitei o resultado, não fui às ruas pedir o impeachment do diretor e mandei o meu marido em meu lugar para partcipar do revezamento.

O fato é que fiquei em casa para admnistrar toda a rotina de limpeza, almoço e cuidar de uma filhote doente, há 3 dias sem comer. O meu maravilhoso companheiro ainda fez a gentilieza de deixar na pia descongelando um gigantesco frango para eu temperar e assar. Não me queiram mal, nem carne eu como direito, então desossar, costurar, rechear e retirar os miúdos de um frango pra mim é uma missão hercúlea. Cozinho relativamente bem arroz, petiscos, molhos, todos os grãos, mas carnes...Não suporto o cheiro, fui vegetariana por sete anos, daí ainda tenho dificuldade com pés, miúdos e pescoço dessas galináceas.

Supostametne seria uma receita muito simples que assitimos em um programa, desses muitos da GNT. Deveria assá-lo ao forno depois de extirpá-lo, costurá-lo e temperá-lo com molho de laranja. Bom, pra começar a receita com toda empolgação que eu estava sentindo descobri que não tinha laranja e quase nenhum dos ingredientes da tal receita prática que exigia uma maestria de chef gourmet para sua execução. Trocando em miúdos, eu resolvi temperar com alho, pimenta e sal, e encontrei um resto de suco de maracujá na geladeira pra substituir a laranja. Joguei quase todo o suco no frango e fiz uns cortes para penetrar bastante, depois cortei umas batadas e cebolas largas e coloquei ao lado para acompanhar. Bonito ficou.

Não dá pra seguir tudo certinho, comigo, pelo menos, não dá. Enquanto o forno esquentava, e a tal galinha gormetizada marinava, comecei a faxina. Tem dias em que me pergunto onde isso tudo vai dar, os aprendizados, a disciplina que a vida no Vale do Capão está me exigindo e que nunca tive, a dedicação exclusiva à família, coisa que nunca tive também, mas são sentimentos e emoções novas, e tenho procurado viver um dia de cada vez.

O livro ainda é um sonho, até dezembro sai. Impus-me esse prazo e vou cumprí-lo. Quanto ao frango é mais ou menos como minha vida aqui: aproveito muito os recursos disponíveis, torço muito que dê certo e tempero com o meu melhor, embora quase nunca seja o que a receita pede.


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