Assim que iniciamos as obras daqui de casa, em janeiro, apareceu uma cobra verde e se escondeu em nossa laje, num buraquinho entre as pedras. Ela era linda, uma tonalidade clara, quase fluorescente de verde, os olhos negros davam um contraste incrível, e de tantos detalhes que exibia em sua pele, e tanta beleza, parecia mais uma pintura. Imagino que tenha se refugiado aqui porque estavam desmatando um terrreno próximo, supostamente para construir uma igreja.
Particularmente nunca gostei de reptéis de uma forma geral: animais de pele fria, se arrastam. Cobras então, pior ainda. Acho que elas são as campeãs do medo, pois como são realtivamente raras na paisagem urbana e quando se apresentam, estão fora do seu habitat natural, geralmente estão assustadas e agressivas. O fato é que meu companheiro, num surto de medo por causa da nossa filha menor de apenas 3 anos que vivia descalça circulando pela obra, pediu que um dos pedreiros a matasse, mesmo depois de informado que cobras verdes não são venenosas. Fiquei muito mexida com o fato, sou colérica por natureza, aprendi a me controlar, mas não em casos dessa natureza. Briguei feio com Lelo e com Paulista, o ajudante de pedreiro que executou a bichinha. Não gosto e tenho medo de cobras, mas gosto muito menos dos caminhos fáceis, dos atalhos.
Enquanto eu falava, me olhavam como se eu fosse uma louca varrida, não entendiam o motivo da minha angústia e porque estava levando a vida de uma pobre cobra verde tão a sério. Mas do mesmo jeito que ela não representava nenhuma ameaça de perigo real para nenhum de nós, pra mim também aquilo acabou se tornando um símbolo de como sempre havíamos , até agora, lidado com os nossos problemas: da formam mais fácil.
Cobras nos remetem ao medo do desconhecido, este sim o grande inimigo, que precisa ser combatido dentro de nós. Aquela cobra verde havia buscado refúgio em nossa casa, se sentiu segura na nossa presença. Com certeza, seria uma questão de tempo para que diante do barulho e entra e sai diário de operários e caminhões descarregando material a robusta e verde mata que nos circundava lhe proveria uma sobrevivência muito mais segura. Só precisávamos ter dado tempo ao tempo. Ah, mas o medo... o medo não nos dá descanso, nos leva a agir ou reagir, geralmente com o que existe de pior em nós. Atacamos para nos proteger, recuamos para não enfrentar e desistimos para não tentar.
O problema é que estávamos aqui pra nos integrarmos a uma outra coisa que nem sabemos o que é ainda, mas que com certeza não envolvia matar cobras que nos visitam. Acreditem, tive um momento Janete Clair e quase pedi a separação por causa da tal da cobra. Tempos depois, esbarrei na foto dela sem querer e me vi ainda emocionada com a sua imagem, tão perfeita e harmoniosa. O reconhecimento desconfortável de como lidamos com ela ainda é pertubador. Ela tinha tudo a ver com o terreno, o lugar, o verde em volta... Os únicos elementos diferentes e estranhos ao ambiente erámos nós na verdade.
Passado mais algum tempo fomos visitados por um filhote de cobra Coral, da verdadeira, três listras diferentes, venenosa, muito pequena ainda. Peguei a pequena com o cuidado de quem sabia que o que estava diante de mim era, mais que outro animal indefeso, uma oportunidade de redenção. Cheguei a pensar em outra oportunidade que ali se apresentava - a de deixar a cobrinha no terreno de uma vizinha que receio ser quase da mesma éspecie que ela, de tão venenosa que é, mas fui voto vencido quando comuniquei os meus planos não muitos cristãos para a família.
Esperei Lelo chegar, afinal ele precisava se redimir mais do que eu. Ele mesmo levou a coral para uma beira de rio próximo e lá a deixou. Nunca mais a vi, graças a Deus, pois deve estar um bichão agora. O fato é que talvez essas visitas inusitadas, que nos levam a reagir de uma forma tão forte e aniquiladora, sem possibilidade de tolerâncias, espaços ou alteridades, nos fazem lembrar do "outro" estranho que não reconhecemos e tememos, e que muitas vezes mora em nós.